Exposição “Justiça de Transição não é transação: a brutalidade e o jardim”

Mostra reúne trabalhos de artistas nacionais que resgatam tristes episódios da ditadura militar brasileira, com o objetivo de provocar a reflexão sobre a gravidade dos crimes cometidos no período e sobre a necessidade de se buscar justiça e reparação.

De 18/10/2023 a 31/5/2024

Horário normal de visitação (após recesso):
Horário de visitação: das 14h30 às 17h
Entrada gratuita
Para grupos de 10 pessoas ou mais, o agendamento de visita guiada pode ser feito pelo e-mail

Curadoria: Fabiana Schneider, Mirtes Marins de Oliveira e Luísa Paraguai
Curadora adjunta: Helena Barbour

 

Memória e ativismo epistêmico como espaços de resistência

A exposição de abertura do Memorial da Procuradoria da República do Rio de Janeiro pretende trazer à lembrança, para não fazer esquecer, a história dos tristes momentos da ditadura militar brasileira.

Nesse contexto, resgatar a memória é, para o Ministério Público Federal, uma forma de buscar responsabilizações dos agentes de estado que praticaram crimes durante a ditadura, obliterando “eventuais” amnésias da história oficial. Nas artes, a memória, usada de forma criativa e/ou poética, pode ser uma valiosa matéria-prima para artistas exercerem a resistência.

Buscamos fugir do esquecimento deliberado não apenas por meio de discursos políticos tradicionais, mas também e principalmente com a resistência criativa consagrada pela multiplicidade de linguagens das Artes.

Em tempos de discurso político e de macropolítica esvaziados, guiados pelo maniqueísmo cego, a melhor forma de criar afetos e mobilizar paixões nas pessoas é por meio das artes.

A memória coletiva é produção histórica, é um projeto de fazer sentido comunitário. E, na disputa de sentidos, enquanto discursos hegemônicos produzem apenas afetos passivos e tristes, a Arte produz afetos ativos e alegres, criando novas possibilidades de mundo.

Justiça de Transição não é transação: a brutalidade e o jardim

Após um período de grande violação de direitos humanos por parte do (des)governo de um país, como retomar a normalidade e ultrapassar a brutalidade vivida? Normalmente, durante esses períodos, vive-se o autoritarismo, com absoluta falta de transparência sobre a veracidade de fatos e o encobrimento de atos criminosos praticados pelos gestores do Estado.

O que acontece com os que comandam os rumos de uma guerra, de uma ditadura, de um genocídio quando advém a pacificação, a redemocratização, o retorno ao estado de normalidade? Como buscar informações sobre os atos efetivamente praticados, os crimes cometidos, os mortos e desaparecidos?

É para esses momentos de reconstrução que passou a ser modelado o que chamamos de Justiça de Transição, que traz a noção de como as sociedades deverão lidar com o legado de destruição deixado por períodos de violações de direitos humanos.

As obrigações incumbidas a um país para realizar a Justiça de Transição podem ser divididas em quatro eixos: a) direito à justiça: investigar, processar e punir violadores de direitos humanos; b) direito à verdade: revelar a verdade para as vítimas, seus familiares e toda a sociedade; c) direito à compensação: oferecer reparação adequada às vítimas e familiares diretamente lesados; d) direito a instituições reorganizadas (accountable): afastar os criminosos de órgãos relacionados ao exercício da lei e de outras posições de autoridade.

No Brasil, após o período da ditadura militar, as principais iniciativas de Justiça de Transição implementadas pelo Governo ou aprovadas pelo Congresso Nacional foram a) a edição da Lei nº 9.140/1995, com a qual se reconheceram os mortos e desaparecidos políticos pela repressão, se garantiu às famílias o direito à reparação e à busca e identificação dos restos mortais e se instituiu a Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos (CEMDP); b) a promulgação da Lei nº 10.559/2002, a qual regulamentou o art. 8º da Disposições Transitórias da Constituição, criou a Comissão de Anistia e promoveu um amplo sistema de reparações materiais; c) a instituição de uma Comissão Nacional da Verdade (CNV), com a Lei nº 12.528/2011; e d) a reforma do marco normativo sobre transparência e sigilo de arquivos, com a Lei nº 12.527, de 2011.

Especificamente quanto ao Direito à Justiça, as investigações de crimes praticados durante o período ditatorial tiveram início no ano de 1999, junto ao Ministério Público Federal, com o recebimento de uma representação enviada pelo Grupo Tortura Nunca Mais, do Rio de Janeiro, sobre a interrupção, pela Unicamp, dos trabalhos de identificação dos restos mortais exumados da vala clandestina do Cemitério de Perus e a falta de identificação dos restos mortais do desaparecido político Flávio Carvalho Molina. Essa representação foi distribuída à Procuradoria Regional dos Direitos do Cidadão em São Paulo e deu origem ao primeiro Inquérito Civil sobre o tema no país.

Desde então, tem apresentado diversas denúncias criminais sobre fatos investigados em todo o país, que envolvem homicídios, desaparecimentos forçados, estupro e tortura.

Para além das reparações individuais daqueles que literalmente viveram as violências e violações por parte do Estado, a reconstrução da memória coletiva fundada na verdade é um caminho a ser trilhado para reforçar ou readquirir o sentimento de justiça. Daí a importância de investigar, falar, refletir, debater, mostrar, informar, apresentar tudo o que foi vivenciado nos anos de chumbo. É preciso estar atento! Tudo para que esses fatos não se repitam nunca mais.

Proposta expositiva:

O espaço de exposição é composto pelos seguintes ambientes:

1. Sala principal: exposição de fotografias, instalações:

  • Núcleo Indígenas: Cláudia Andujar - Painel de fotografias da Série “Marcados’’
  • Núcleo Vladimir Herzog: Cildo Meireles - instalação “Inserções em circuitos ideológicos” + vídeo entrevista;
  • Núcleo RioCentro: Aníbal Philot - fotografia
  • Núcleo Araguaia: Ciro Fernandes – “Araguaia” xilogravura

2. Corredor Interativo: cartazes do artista Denilson Baniwa

3. Miniauditório: para os grupos de estudantes, será apresentado um pequeno vídeo para esclarecimentos sobre Justiça de Transição (em síntese, falar sobre o que é Justiça de Transição). Em algumas oportunidades, teremos a presença de procuradores da República para conversar sobre as investigações realizadas pelo GT Justiça de Transição.





Textos complementares

 

INDÍGENAS

O Genocídio Indígena durante a ditadura militar: quando prantear?

Se certas vidas não são qualificadas como vidas ou se, desde o começo, não são concebíveis como vidas de acordo com certos enquadramentos epistemológicos, então essas vidas nunca serão vividas nem perdidas no sentido pleno dessas palavras.

Judith Butler, Quadros de guerra

Ao problematizar a questão da precariedade da vida e da noção política de ‘condição precária’ da vida, J. Butler introduz a seguinte questão: “Quando a vida é passível de luto?”. Por que algumas pessoas, grupos e povos merecem notícias, pesar, luto e pranto, enquanto outras, não?

No Brasil, o conceito é perfeitamente aplicável ao genocídio indígena através dos séculos e mais especificamente durante a recente ditadura militar. A falácia da discussão se a ditadura militar brasileira foi ‘ditabranda’ ou não (pois, oficialmente, 434 pessoas foram mortas – ou desaparecidas – por motivos políticos entre 64 e 85 enquanto no Chile foram 3.065 mortos e na Argentina aproximadamente 30 mil) encerra racismo pois esconde o genocídio indígena ocorrido também neste período: mais de oito mil mortos (além de ciganos, quilombolas e outras pessoas pertencentes a comunidades tradicionais). O ‘fazer esquecer’ do verdadeiro número de mortos perpetua racismo e impede um efetivo rompimento com as práticas do passado e a lembrança de um período de governo em que a tortura e os assassinatos eram “políticas de estado”. “Quando a vida é passível de luto?”.

No Brasil, os anos de chumbo perseguiram, torturaram e dizimaram milhares de indígenas. Tais fatos foram escancarados no Relatório Figueiredo, encontrado no Museu do Índio, em 2013, pelo indigenista Marcelo Zelic (falecido em 08 de maio de 2023).

Composto por 30 volumes e mais de 7.000 páginas, o Relatório Figueredo consiste em um dossiê elaborado para verificar a situação dos indígenas no Brasil. Iniciado em 1963, por ocasião de uma Comissão Parlamentar de Inquérito, esse relatório foi retomado durante a ditadura militar em resposta às pressões internacionais sobre notícias de que o então Serviço de Proteção ao Índio (o SPI, substituído pela Funai em 1967) era uma instituição de perseguição aos indígenas.

Há relatos de caçadas humanas promovidas com metralhadoras e dinamites atiradas de aviões, inoculações propositais de varíola em povoados isolados e doações de açúcar misturado ao veneno estricnina.

Dentre as atrocidades cometidas contra os povos indígenas durante o período ditatorial, podem ser destacadas: a) a criação da Guarda Rural Indígena (GRIN), formada por várias etnias e treinada pela ditadura militar para repressão aos próprios indígenas; b) o “Reformatório Krenak”, um verdadeiro campo de concentração no estado de Minas Gerais, para onde foram enviados indígenas oriundos de ao menos onze estados das cinco regiões do país, considerados “rebeldes” por fatos banais como embriaguez; c) deslocamentos forçados para a fazenda Guarani, no município de Carmésia (MG), que funcionou como centro de detenção arbitrária.

A partir desse grande arquivo, o Ministério Público Federal realizou trabalhos para investigar e denunciar crimes praticados por agentes de estado contra indígenas durante a ditadura militar, além de ajuizar ações civis públicas, buscando reparações.

Em 2015, o MPF apresentou à Comissão de Anistia um requerimento de anistia política coletiva ao Povo Indígena Krenak, para reconhecimento oficial das violações estatais cometidas contra a etnia. O MPF também requereu a reparação econômica coletiva dos Krenak, cuja existência tinha sido posta em risco pelas violações perpetradas pela ditadura militar, causando desagregação social e cultural. Também, foi ajuizada ação civil pública, pelo MPF, para que o Estado brasileiro reconhecesse as violações cometidas contra os povos indígenas durante a ditadura militar e buscou medidas de reparação. Na esfera criminal, o MPF ofereceu, em 2019, denúncia contra o Capitão Manoel dos Santos Pinheiro pelo crime de genocídio contra a etnia Krenak, acusando o policial militar por diversas violações aos direitos humanos com o objetivo de destruição do grupo étnico.

Em 2019, em uma audiência judicial ocorrida no Território Indígena Waimiri-Atroari (localizado na fronteira entre os estados do Amazonas e Roraima), os indígenas descreveram cenas de horror ocorridas durante o período ditatorial: helicópteros que sobrevoavam as aldeias derramando veneno e detonando explosivos sobre centenas de indígenas reunidos para celebração de rituais de passagem, além de sucessivos ataques a tiros, esfaqueamentos e degolações violentas praticadas por homens brancos fardados contra os indígenas sobreviventes dos ataques aéreos.

Segundo o historiador australiano Patrick Wolfe, a lógica profunda do colonialismo é a eliminação de povos autóctones para colonizar seus territórios. Wolfe ensina que, ao longo dos séculos, as “tecnologias de violência” para efetivar colonizações variam intensamente. Na floresta amazônica, ao norte da margem esquerda do Rio Amazonas, entre 1974 e 83, tivemos tiros, bombas e chacinas contra os Waimiri-Atroari.

Sob os lemas “integrar para não entregar” e “terra sem homens para homens sem terra”, a ditadura militar passou a realizar obras megalomaníacas, como a construção da BR-210 (a Perimetral Norte) que levou à invasão do território Yanomami, cuja repercussão dá-se até os dias atuais. O garimpo ilegal e devastação ambiental (“tecnologias de violência”) são uma realidade vivida há décadas e que apareceram intensamente na mídia nos últimos meses diante da crise humanitária instalada.

Em 1971, com o propósito de detalhar os empreendimentos do governo, a Revista Realidade financiou uma grande equipe de jornalistas para adentrarem e retratarem a região Amazônica. Foi nessa oportunidade que Claudia Andujar conheceu o povo Yanomami. Em dezembro de 1971, Andujar faz a primeira de muitas visitas aos Yanomami da região de Catramani. Em 1978, ao lado de Bruce Albert e Carlo Zacquini, Andujar cria a Comissão pela Criação do Parque Yanomami (CCPY), para lutar pela demarcação contínua da terra indígena, opondo-se à proposta do governo ditatorial de “integração” dos indígenas à sociedade. Na década de 80, para conter o avanço de doenças entre os indígenas, Andujar engaja-se juntamente à CCPY pela implantação de um programa de saúde de atendimento continuado aos indígenas. Nessa oportunidade, Claudia Andujar realiza a série de fotografias posteriormente nominada “Marcados”.

“Nosso modesto grupo de salvação - apenas dois médicos e eu - embrenhou-se na selva amazônica. O intuito era começar a organizar o trabalho na área da saúde. Uma de minhas atividades era fazer o registro, em fichas, das Comunidades Yanomami. Para isso, pendurávamos uma placa com numero no pescoço de cada Índio: "vacinado". Foi uma tentativa de salvação. Criamos uma nova identidade para eles, sem dúvida, um sistema alheio à sua cultura. São as circunstâncias desse trabalho que pretendo mostrar por meio destas imagens feitas na época. Não se trata de justificar a marca colocada em seu peito, mas de explicitar que ela se refere a um terreno sensível, ambíguo, que pode suscitar constrangimento e dor.” (C. Andujar).

Andujar realizou cerca de 1000 retratos de identificação dos Yanomami. Vidas que tem ou tiveram os seus caminhos. Vidas passíveis de luto.



VLADIMIR HERZOG/VLADO HERZOG

“Quando perdemos a capacidade de nos indignarmos ante atrocidades sofridas por outros, perdemos também o direito de nos considerarmos seres humanos civilizados”

Vladimir Herzog

Vlado Herzog, emigrante da Croácia chegou ao Brasil com os pais em 1942. Naturalizou-se brasileiro. Estudou Filosofia na Universidade de São Paulo (USP) e iniciou a carreira de jornalista em 1959. Quando Vladimir retorna ao Brasil em 1968, depois de morar em Londres por 3 anos, observa-se o recrudescimento do autoritarismo no Brasil, culminado com a edição do Ato Institucional no. 2, em outubro de 1965. Esse ato torna-se um divisor de águas, marcando o início de um período político brasileiro que aproximou os interesses nacionais com as Forças Armadas sem nenhum vínculo com as bases sociais. Essa identificação instituiu uma transformação do Estado brasileiro num Estado policial (Pereira, 1975).

O regime militar, instaurado entre 1964 e 1984 e reconhecidamente ditatorial e não autoritário, visou legitimar seus propósitos e ações através da construção de um pretenso ideário democrata cujos valores sociais: família, religião e pátria apresentavam-se fundantes da vigente ordem político-cultural brasileira. Essa busca por legitimidade pelos militares e outros membros do grupo de poder (tecnoburocratas, representantes do grande capital e lideranças políticas) implicou diversas estratégias de reconhecimento, para além da violência, enquanto discursos, livros publicados pelo departamento de imprensa nacional, depoimentos, entrevistas e pronunciamentos na imprensa (Rezende, 2013).

Neste contexto, Vladimir, redator e editor na Revista Vi-são, respectivamente em 1970 e anos seguintes, no exercício de um jornalismo cultural crítico e atento aos fenômenos nacionais e internacionais, em parceria com Zuenir Ventura, produz editoriais que questionaram os limites impostos pela Ditadura brasileira sobre a produção artística vigente, na medida em que se colocava como vozes discordan-tes da ordem e da padronização social instituídas em suas dimensões objetiva e subjeti-va.

Citam-se alguns editoriais:

"Alguns sintomas graves estão indicando que, ao contrário da economia, a nossa cultura vai mal e pode piorar se não for socorrida a tempo. Quais são os fatores que estariam criando no Brasil o chamado ‘vazio cultural’? [...] a quantidade suplantando a qualidade, o desaparecimento da temática polêmica e da controvérsia na cultura, a evasão dos nossos melhores cérebros, o êxodo de artistas, o expurgo nas universidades, a queda de venda dos jornais, livros e revistas, a mediocrização da televisão, a emergência de falsos valores estéticos, a hegemonia de uma cultura de massa buscando apenas o consumo fácil.” em “A crise da cultura brasileira” (5/7/1971, vol. 39, no. 1);

“Na caracterização da independência nacional, é indispensável reconhecer que só com a dualidade Governo-oposição é que a sociedade se representa por inteiro. Negar o direito de divergir, ou deixar de assegurar o direito de exprimir opiniões divergentes, dentro da ordem e da lei, equivale a transformar uma parcela do povo em minoria dentro de sua própria casa” em “A luta pela independência cultural. 1922 – O primeiro gesto” (28/2/1972, vol. 40, no. 4);

"Ao contrário da economia e tanto quanto a política, a cultura brasileira viveu nesses dez anos alguns de seus momentos mais dramáticos e sofridos. Caminhando da onipotência à impotência, do choque à apatia, dividida entre os apelos fáceis do conformismo e o seu compromisso crítico, a criação intelectual atraiu ódios e suspeitas, e mergulhou no vazio e na fossa. Agora, amadurecida pelo sofrimento, busca de novo a vontade, abre-se ao diálogo e alimenta-se de uma esperança: a de que a liberdade tantas vezes invocada lhe seja restituída, não como um favor concedido, mas como um direito adquirido, como atributo natural do pensamento" em “Da ilusão do poder a uma nova esperança” (11/3/1974, vol. 44, no. 5).

Nestas condições políticas, a repressão e a violência também foram potencia-lizadas pelas forças armadas e Escola Superior de Guerra, quando torturaram com re-quintes de crueldade aqueles que desafiaram a ordem social instituída. E assim, Vladimir foi torturado e assassinado na sede do DOI-Codi[1] em 25 de outubro de 1975. Para além de esclarecer o contexto da morte de Vladimir Herzog e da responsabilização do Estado brasileiro, condenado pela Corte Interamericana de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos (OEA) em 2018, uma das principais reivindicações da família foi a retificação por lesões e maus tratos da certidão de óbito, que aconteceu apenas em 2013. Ecos contundentes permanecem pela democracia, pela cidadania e pelos direitos humanos nas ações do Instituto Vladimir Herzog.



RIOCENTRO

No período compreendido entre 1979 e 1985, o Brasil atravessava um processo de reabertura política que marcava a passagem do regime civil-militar para um novo regime democrático-constitucional. A transição, contudo, desagradava parte do setor militar, fazendo com que alguns de seus agentes mais radicais, os chamados “linha dura”, passassem a se organizar com a finalidade de sabotar o processo de democratização a partir da realização de atos terroristas. Dentre estes destaca-se o emblemático atentado no centro de convenções Riocentro, localizado na Barra da Tijuca, Rio de Janeiro.

Em 30 de abril de 1981, acontecia no Riocentro um show em comemoração ao Dia do Trabalho, o evento reunia um público de aproximadamente 20 mil pessoas para assistir a shows de grandes nomes da música brasileira, como como Alceu Valença, Beth Carvalho, Ney Matogrosso, Elba Ramalho, Djavan, Gonzaguinha e Chico Buarque. O plano elaborado pelo Centro de Operações de Defesa Interna (DOI-Codi) do I Exército, contava com ao menos três explosões, que tinham como objetivo instigar o pânico no evento e culpabilizar grupos de esquerda, como a já extinta Vanguarda Popular Revolucionária (VPR). Contudo, por volta das 21h20, uma explosão prematura dentro de um carro esportivo placa fria acabou por frustrar o plano dos agentes, matando Guilherme Pereira do Rosário, especialista em montagem de explosivos, e ferindo gravemente Wilson Luiz Chaves Machado, capitão do I Exército e chefe do DOI-Codi. Às 21:45h uma segunda bomba explodiu na casa de força do Riocentro com a intenção de interromper o show ao cortar a energia, no entanto, sua força não foi suficiente para provocar um blecaute. A investigação preliminar constatou a presença de um terceiro explosivo no carro, a versão, contudo, seria inicialmente “desmentida” por porta-vozes militares, retornando em posteriores aberturas de inquérito.

No dia seguinte, dá-se início a uma operação para que não houvesse a apuração dos responsáveis pelo atentado do Riocentro, com a entrevista concedida ao Jornal do Brasil pelo então Secretário de Segurança Pública do Rio de Janeiro, o general Waldir Muniz. Nela apresentou-se a versão de que os militares no carro teriam sido vítimas de uma armadilha, surpreendidos pela colocação do explosivo no veículo. Segundo Muniz, ao sair em marcha-a-ré da vaga, os dois militares teriam sido pegos de surpresa, e o capitão Wilson teria dito: “há uma bomba aqui!”, o sargento Rosário então pegou o objeto que explodiu. Diversos foram os questionamentos sofridos quanto a veracidade desta narrativa, visto que a única testemunha viva da ocorrência estava internada em estado grave, além de outros fatores revelados pela imprensa ao longo dos dias que se seguiram ao atentado, como realização de alterações no comando do 18 Batalhão da Polícia Militar, responsável pela segurança do evento às vésperas do acontecimento. O inquérito foi encerrado cerca de 45 dias após o ocorrido sob a conclusão de os dois agentes estavam em missão para observar a influência de elementos da esquerda radical sobre a programação do evento quando foram vítimas de uma armadilha.

A insatisfação da sociedade com o resultado das investigações levou a diversas tentativas de reabertura do caso ao longo dos anos, incluindo em 1987, 1996, 1998 e 1999, quando um novo Inquérito Policial Militar foi instaurado para investigar os fatos ocorridos. O resultado, contudo, foi que, embora tenha contribuído para a elucidação dos responsáveis,o inquérito acabou por ser arquivado pelo Superior Tribunal Militar, que o enquadrou, de modo controverso, na Lei da Anistia de 1979. O caso só voltou aos holofotes a partir de 2012, quando a morte do coronel Júlio Miguel de Molinas Dias, ex-comandante do DOI do I Exército, no Rio de Janeiro, propiciou a descoberta de novos documentos relacionados à explosão das bombas. Conforme o Relatório da Comissão Nacional da Verdade foram encontrados “manuscritos e memorandos datilografados, com registro de ordens e telefonemas com a clara finalidade de monitorar o caso e evitar que fatos viessem à tona de maneira a incriminar ou demonstrar o envolvimento de militares no atentado.”(2014, p. 15-16).

As emblemáticas fotos do atentado ao Riocentro, que estamparam todos os jornais e são conhecidas do público até os dias de hoje, foram capturadas pelo fotógrafo João Baptista Scalco, na época parte do jornal O Globo. Scalco estava presente no evento e conseguiu registrar os momentos imediatamente após a explosão prematura da bomba, capturando a atmosfera de caos e confusão que se instaurou no local. As imagens entraram para a história mostrando os danos causados, como o carro destruído pela explosão, e também a reação das pessoas presentes. Essas fotografias se tornaram evidências cruciais na investigação do atentado e foram amplamente divulgadas, contribuindo para a compreensão dos eventos daquela noite e deixando um legado importante na história do Brasil.



ARAGUAIA

Na primeira metade dos anos 1970, o Estado brasileiro praticou o extermínio planejado e sistemático do movimento de estruturação das lutas camponesas organizado pelo Partido Comunista do Brasil (PCdoB). Em desenvolvimento desde o início da década de 1960 na região do rio Araguaia, a organização foi instalada na região Norte do país, na região denominada Bico do Papagaio, entre o atual estado de Tocantins, Maranhão e o Pará, escolhida por seu isolamento e falta de amparo do poder público, que tornaria difícil a vigilância, mas também por seu histórico de disputas pela terra. Quase a totalidade dos participantes, do lado do PCdoB, já eram perseguidos pelo regime ditatorial e, portanto, estavam na clandestinidade, quando se dirigiram à região.

Nos testemunhos daqueles que vivenciaram e sobreviveram os eventos no Araguaia fica clara a desigualdade de forças, resultante da necessidade também do regime propagar sua vitória contra aqueles que o confrontavam. Milhares de agentes do Estado trabalharam diretamente na repressão, enquanto o grupo do Partido era formado por cerca de 70 militantes, a maioria com idade média de 30 anos. Desses, até os dias atuais, cerca de metade são considerados desaparecidos políticos e, certamente, foram executados em condição de tutela do poder público entre 1972, quando da primeira fase dos ataques, até 1974, considerado o final das operações diretas no Araguaia.

Nesse período, além da perseguição, tortura, aprisionamento e morte dos participantes que foram para a região na tentativa de instaurar a oposição ao regime e disseminar os ideais comunistas, também as populações da região, entre eles os camponeses e os grupos de indígenas de etnia Aikewara, sofreram acossamentos, sevícias e mortes, com intuito de forçá-los a colaborar com as forças coercitivas.

A partir da Lei de Anistia (1979), os familiares passaram a procurar pelos militantes, solicitando informações à União, sem sucesso. Em 2010, o Brasil foi condenado pela Corte Interamericana de Direitos Humanos, tornando o Estado brasileiro responsável pelo desaparecimento dos militantes e pelo esclarecimento sobre essas mortes, assim como determinou a investigação, processo e punição dos agentes do Estado envolvidos nas operações.

Os chocantes relatos dos sobreviventes serviram para elaboração inúmeras produções jornalísticas, mas também artísticas, com o objetivo de chamar a atenção os significados das ações no Araguaia. O artista Ciro Fernandes faz homenagem aos perseguidos e desaparecidos no contexto do Bico do Papagaio, na xilogravura de grandes dimensões denominada Araguaia, realizada em 1979. Essa obra tem como referência outra, que trata sobre o horror da violência dos exércitos, a icônica Guernica (1937) de Pablo Picasso, que mostrou do ponto de vista da arte a tragédia do ataque alemão, durante a Guerra Civil, em direção aos moradores civis daquela cidade espanhola.